sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Matilde, eu sou de Libra


O som das correntes do meu portão  rasgam o silêncio da madrugada enquanto eu, embriagado, adentro em meu lar.
Acredito que isso deve incomodar alguns vizinhos. Mas juro solenemente que, não faço isso por mal.

A casa nem sempre está organizada, mesmo assim é sempre bom estar por aqui. Tenho que tomar cuidado ao abrir a geladeira, pois a porta quebrou e agora, se não remove-la completamente, ela cai sobre quem a abrir. Tive que desativar o chuveiro porque o registro não funciona mais. Então, enquanto eu não resolver esse "contratempo", quando vou tomar banho, utilizo a torneira do lavatório para encher um balde e após isso, lanço a água do balde sobre mim. Pra falar a verdade, nem sinto tanta falta de um chuveiro nesse banheiro...

Fazer o que, né, meu estilo de vida é ser livre. O modelo da nova tv é hd, mas ainda não contratei a operadora de tv a cabo. A mesma encontra-se, sem antena. Mesmo assim, não sei por que, ela sintoniza o canal aberto da Rede Bandeirantes. Ainda bem, porque ao menos dá para assistir "Os Simpsons"... O pessoal do telefone fixo avisou que vai instala-lo no dia 21. 

Não tenho saído a canto nenhum. Perdi aquela vontade que eu tinha de sair de casa, seja para aonde for.
E desse jeito, sigo em frente! Nesse  silencioso ritual de continuidades. Essa tem sido a minha rotina, assim tem sido minha vida...

Às sextas, recebo a Nossa Amiga, Diana, aquela Streapper Paulistana. Ela é de Guarulhos, de família Circense. Como ela vai ficar uma temporada no Rio de Janeiro, tomei a liberdade de convidá-la, ela aceitou o convite e há mais ou menos um mês, vem para cá todo fim de semana. Adoro tocar violão para ela enquanto ela canta, dança e toca gaita. 

A onda de positividade é tão intensa que quando percebemos, estamos nus.

Ultimamente, venho recebendo uns convites para Sair. 
Querem que eu volte a cantar, tocar... 
Mas, não: no momento, não estou  interessado...

Desde que eu me vi sem você, eu não sinto mais vontade, nem a menor inspiração para  nada disso. Prefiro ficar aqui, no meu lar:

Incomodando aqueles vizinhos mais frustrados e rancorosos com o barulho das correntes do meu portão, toda vez que chego em casa, de madrugada, com os nossos amigos, embriagados, tendo que ter cuidado ao abrir uma geladeira que tem que ter a porta totalmente removida da sua estrutura absoluta, subindo e descendo de uma cadeira, levando a única lâmpada que possuo em casa de um lugar para o outro toda vez que anoitece e preciso enxergar alguma coisa dentro de casa, aguardando o pessoal vir instalar o telefone fixo e a tv a cabo, tomando banho de balde, comendo o bom e velho "bife com fritas" e bebendo suco de cajú estupidamente gelado no almoço...

E certas noites, quando a saudade bate  forte, bebo vinho rascante, fumo charuto, filosofo a respeito desse amor, da liberdade, da vida e da minha busca incessante por paz de espírito. 

E enquanto o álcool lentamente domina os meus neurônios, tento encontrar uma maneira de escovar os dentes das bocas do meu velho fogão.

Márcio Diniz 

04/11/2016, Vila Margarida, Itaguaí, RJ. 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Outro fragmento de "O Palácio dos Vales", o romance que escrevi




















- Pode deixar, Mineiro, vou comprar umas terras aqui, no Rio de Janeiro, que vai começar na beirada da areia da praia, e vai terminar só na divisa com o seu Estado, vou dar um *arrego pro Governador de lá e pro Governador daqui, vou pagar umas máquinas pra escavar essas terras, abrindo um braço d'água bem largo, que vai pegar do mar do Rio de Janeiro, até a divisa do Estado de Minas, só pros Mineiros como você poderem tomar banho de mar também!
Igualzinho aos Cariocas, os Capixabas e os Paulistas!

Beto diz isso enquanto se despede de Mineiro, morador antigo da comunidade.
Enquanto Beto desce a escadaria ouve de longe, Mineiro respondendo ao seu comentário:
- Meu filho: "o mar chora por não banhar o Estado de Minas Gerais"...
Beto sorri mais uma vez e sinaliza com a mão, fazendo sinal de positivo enquanto pensa consigo mesmo: esse velho é mesmo um figura...

Enquanto desce a escadaria, Beto percebe que, pouco abaixo, uma espécie de discussão está em curso.
É Grilo e Doguinho, seus comparsas, no mundo do crime.
Eles discutem com um morador e um deles está apontando a arma, e pode atirar a qualquer momento.
O morador é Tião Mandinga, um respeitado pai de santo. Tião Mandinga possui na comunidade, um centro espírita muito visitado. Tanto por moradores do local, como por gente de todo canto do Rio de Janeiro.
Beto chega por trás dos três e vê Tião Mandinga acuado, aparentando estar com medo. Talvez, por estar na mira de uma arma de fogo.
Beto pergunta: mas que porra é essa que está acontecendo aqui?
Os três se viram pra trás e vêem Beto, já próximo e com cara de quem não está gostando.

Grilo, o que estava apontando a arma para o morador responde:
-Porra patrão, esse cara aí está desrespeitando o lema da favela que diz "fé em Deus".
Beto, ainda sem entender nada, pergunta: por que esse morador está desrespeitando o lema, Grilo?
-Porque ele é macumbeiro, porra! - Grilo responde, exaltado-.
-Pra mim, macumbeiro não tem fé em Deus, macumbeiro tem fé é no diabo!
E se ele vier pra cima de mim *dando papo de ter fé no diabo, eu *estalo ele na hora, mano.
-Cara, -disse Beto - você não sabe de nada mesmo... Nunca ouviu o Hanóy dizer que: aqui na comunidade a gente pode viver tranquilo, ter religião e fé em quem a gente quiser?
-Se ele quiser ter fé em Deus ou no capeta, ele pode ter o quanto ele quiser. A opção é dele e ele é livre pra fazer isso.
Outra coisa: tá ligado que matar macumbeiro dá azar né, e ninguém, a não ser eu, pode matar alguém nessa favela, sem a ordem do Hanóy.
Se você o matasse, eu ia ser obrigado a *passar fogo em você, vacilão.
Agora deixa de *caô, dispensa o *cascudo pra ele *se adiantar e deixa eu passar nessa porra!

Beto diz isso e continua descendo os degraus pra poder passar.
Beto está descendo em direção à eles, quando Tião Mandinga começa a ameaçar Grilo e Doguinho.
-Vocês não sabem com o quê vocês mexeram, vou mandar  exú matar vocês, vou fazer trabalho forte pra vocês morrerem lentamente na mão dos *homens dos pés pretos, vocês irão se arrepender, eu vou... De repente: bang! Ouve-se um barulho e um homem cai, à beira da escadaria, atingido por um disparo na cabeça, e é Beto, o autor. Ele mesmo! Em seguida, se aproxima e descarrega as munições da sua arma na cabeça do pai de santo, que morre imediatamente.
Uma cena horrível, desumana e extremamente cruel.
Grilo pergunta surpreso:
-Mas você não disse que não tinha problema nenhum adorar o capeta, aqui, na comunidade e que matar macumbeiro dá azar?
-Disse mesmo, - responde Beto -, enquanto troca o pente da pistola por outro, carregado, e guarda o que acabou de descarregar no bolso.

-Ele poderia viver e adorar quem ele quisesse aqui, na comunidade.
O que ele não podia, era ameaçar nenhum dos funcionários dessa boca de fumo.
Mexeu com vocês, parceiro, mexeu comigo. É isso que eu faço com quem mexe com os nossos soldados. Se ameaçar um, vai estar ameaçando todos nós.
Procura o Juca Maluco, diz pra ele que o Beto mandou ele pegar esse infeliz e desovar longe daqui.
Deixa eu passar, porque essa conversa toda já me atrasou pra caralho.
Ele passa, se volta pra Grilo e diz:
Aí, olhe pra ele e olhe pra mim: quem é que teve azar aqui?
-Dito isso, Beto desce tranquilamente a escadaria, sorrindo e assoprando o orifício do cano da sua pistola como se nada tivesse acontecido.
Enquanto isso, Grilo e Doguinho saem, à procura de Juca Maluco, o homem que faz esse serviço toda vez que é solicitado.



Dialeto "Carioquês" usado nesse fragmento:

*Arrego = propina, dinheiro sujo.
*Passar fogo = matar, assassinar
*Dando papo = dizendo, falando
*Estalo ele = Mato ele, assassino ele
*Caô = conversa fiada
*Se adiantar = seguir em frente
*Homens dos Pés pretos = Polícia Militar
*Cascudo = Pessoa com experiência de vida

Imagem: divulgação.

Deixa eu te sentir ( Boa Nova ) - letra de música

  Se você Seguir o seu coração  Vai saber A verdadeira intenção.  Procuro sempre o equilíbrio  Da situação , Mas nada me fascina mais que o ...